Em uma decisão rara da Justiça, a ação penal contra um homem acusado de furtar duas balas, um pacote de chicletes e R$ 15 em moedas de um estabelecimento comercial em Registro, interior de São Paulo, foi extinta após a atuação da Defensoria Pública.
O homem de 30 anos, que mendigava pelas ruas da cidade, foi preso em junho de 2015, quando teve fiança fixada em R$ 1 mil. Devido ao não pagamento, ele teve seu flagrante convertido em prisão preventiva e foi encaminhado à Cadeia Pública de Registro, onde ficou até a decisão que trancou o processo, proferida no dia 19 de agosto.
Em conversa com a Defensoria, o Portal da Band apurou parte da história de vida do réu, Allan (nome fictício). Em sua certidão de nascimento, datada de 14 de novembro de 1984, não consta o nome de seu pai. Aos 19 anos de idade, ele se envolveu em um roubo com violência, pelo qual foi condenado a 22 anos de prisão em 2004. No processo, consta que o réu apresentava indícios de vulnerabilidade psíquica – ou seja, transtornos mentais.
Por ter trabalhado enquanto cumpria a pena no presídio de Presidente Prudente, onde também apresentou bom comportamento, Allan conseguiu a progressão de regime e foi solto em julho de 2014.
Em liberdade condicional, notificou a Justiça que iria para Blumenau, Santa Catarina, onde não conseguiu emprego. Ele informou novamente que se mudaria e retornou a Registro. Desde então, vagava pela cidade.
Para o defensor público responsável pelo caso, Menésio Pinto Cunha Junior, a história de Allan, um egresso do sistema prisional e sem laços familiares, é o exemplo perfeito “da pessoa que incomoda a sociedade”, que o vê como um elemento “que só tem jeito com prisão”.
“É infelizmente um caso muito comum, de um direito penal seletivo, que tem uma incidência repressiva em casos que não têm grande reprovabilidade”, argumenta o advogado. “Não chamam a polícia de maneira alguma se uma pessoa bem vestida entra no mercado e coloca o doce dentro do bolso do paletó. Agora, se é um rapaz mal vestido, morador de rua, que está cheirando mal, é polícia com certeza.”
“Se a ideia é aumentar a segurança, jogar na cadeia não é a política pública mais eficaz, pelo contrário. Só piora a periculosidade do réu”, acrescenta Menésio, que classifica o sistema prisional como “medieval e ineficaz na recuperação de alguém”.
Princípio da insignificância
O caso de Allan foi enquadrado no princípio da insignificância, segundo o qual atos que não causam danos significativos a bens protegidos pela legislação não devem ser objeto de preocupação do direito penal.
A aplicação desse princípio faz com que o ato praticado não seja considerado um crime, levando à absolvição do réu, e não apenas à diminuição, substituição ou não aplicação da pena. Apesar disso, Menésio Cunha afirma que é “muito raro conseguir uma decisão como essa do Tribunal de Justiça de São Paulo”, mesmo que a vítima não queira que um processo penal seja instaurado.
“Tem casos com ação penal que a própria vítima fala: ‘Não sei nem o que estou fazendo aqui, meu tempo é mais precioso do que vir na Justiça falar sobre isso. Eu queria que acabasse’”, conta o defensor público. “Mas, pela lei, o patrimônio é tutelado dessa maneira, e a vítima não tem disponibilidade de cessar ou não (a ação)”, explica.
Com apenas cinco anos de atuação no Vale do Ribeira, região do Estado de São Paulo onde fica Registro, a Defensoria local tem priorizado casos como o de Allan, mas tem dificuldades com a negação de habeas corpus para que os réus aguardem o processo em liberdade.
“Nos assusta a facilidade e a frequência com que eles são simplesmente desconsiderados pela Justiça, em especial a Justiça estadual. No sistema penitenciário há um número significativo de presos sem necessidade”, alerta o advogado.
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