Lave a boca com sabão para falar de Leci
A almôndega formada por Lula/Fernando Haddad, Paulo Maluf e Luiza Erundina tornou esta semana irrespirável para quem mora em São Paulo. No meio de uma avalanche de factoides, hipóteses, precipitações, fofocas e arapucas político-partidárias, surgiram até, lá pelo meio da semana, os boatos de que o PT ofereceria a vice-prefeitura da capital paulista ao PCdoB, listando entre os cotados para a vaga os cantores/compositores Leci Brandão e Netinho de Paula.
A possibilidade bastou para coalhar minha linha do tempo no Twitter de impropérios contra um/a eventual “sambista” ou “pagodeira/o” guindado à posição de candidato/a a vice-prefeita/o. O tom, para os humores do meu fígado já esverdeado de bile e besteirol, me pareceu insuportavelmente racista.
Ninguém falou que Leci ou Netinho são ruins para São Paulo porque são pretos ou porque vieram dos estratos mais baixos da pirâmide social, mas, vem cá, “xingar” (xingar?) alguém de “sambista” ou “pagodeiro” não é quase equivalente a “xingar” (xingar?) de “negro”, “favelado” ou coisa pior?
Como repórter e crítico musical, acompanho a carreira dos dois artistas há anos. Leci Brandão, sempre pouquíssimo reconhecida pelas classes A e B, é uma entre os dez ou cinco maiores compositore/as de samba vivos e atuantes. É autora, por exemplo, de “Isso É Fundo de Quintal” (1985), precursora de toda uma geração (que tem em Zeca Pagodinho sua expressão mais reluzente). Obviamente, isso não basta para torná-la possível boa candidata a candidata. O assunto é bem mais complexo que uma letra de partido alto.
Ocorre, no entanto, que Leci, além de sambista, apoiadora entusiasta dos povos marginalizados (que ela chama de “comunidades”) e culturadora do carnaval realmente popular, é uma baita militante de causas sociais. De dois anos para cá, trouxe a militância para a política propriamente dita — carioca radicada em São Paulo, foi eleita deputada estadual pelo estado (inclusive com meu voto).
Enquanto a maioria de próceres da nata do samba rejeita pagodeiros, rappers, funkeiros, axezeiroes e outros artistas p-r-e-t-o-s por tachá-los (e não “taxá-los”, como diz a ministra da Cultura Buarque de Hollanda) de musicalmente “impuros” ou coisa que o valha, Leci mantém relações íntimas com todos eles. Já cantou axé, apoia e é apoiada por Netinho, é idolatrada por dez entre dez pagodeiros e rappers, encarnou a “Dona Maria” do maravilhoso e contundente manifesto musical da Posse Mente Zulu de Rappin’ Hood.
“Deixa ele gemer, deixa ele gozar, deixa ele voar, é melhor/ do que ele sacar de uma arma pra nos matar”, ela canta no meio do “Dona Maria” (2004) da Posse Mente Zulu, retomando versos de sua própria “Deixa, Deixa”, que lançou em 1985 por uma gravadora brasileira de médio porte, após cinco anos de censura imposta por uma das multinacionais do disco.
Era o mesmo caso de “Zé do Caroço”, que ficou anos engavetada, passou despercebida ao ser lançada em 1985 e só foi renascer em 1993, nas mãos pagodeiras do grupo paulista Art Popular, e, principalmente, em 2005, quando o negríssimo Seu Jorge a regravou trocando matreiramente o “na hora que a televisão brasileira DISTRAI toda gente com sua novela/ é que o Zé põe a boca no mundo/ é que faz um discurso profundo/ ele quer ver o bem da favela” de Leci por “na hora que a televisão brasileira DESTRÓI toda gente com sua novela…”. Protesto musical-social de primeira, atirado à fuça de quem não quiser fingir que não compreende o mundo onde vive.
“Na ditadura, os compositores intelectuais faziam protesto, porque aquilo estava atingindo seus pares. Mas aconteceram e acontecem coisas bem piores no país e não vejo mais ninguém fazendo nada, a não ser a juventude negra que faz hip-hop”, afirmou Leci quando fiz uma entrevista detalhada com ela, em 2007, para a revista CartaCapital. Até pouco tempo antes, ela era para mim pouco ou nada mais que uma narradora do carnaval na Globo.
Comecei a entender que estava errado pouco antes disso, ao encontrá-la, como repórter em cobertura, num congesso pela promoção da igualdade racial. Aí passei a prestar atenção nos sambas, forrós, axés e baladas românticas que, estupidamente, o autodenominado crítico musical nunca tinha ouvido. Meu queixo nunca mais parou de cair por Leci.
É por isso que digo, de fígado mais amargo e mais doce que o habitual: me perdoem os racistas, mas quem ridiculariza Leci como sambista, pagodeira, cantora, negra, defensora da favela etc. deveria — deve — desculpas envergonhadas à grande artista e militante. Ridicularizá-la é prova grosseira de ignorância musical, cultural e política. Se ela está habilitada ou não a ser vice, prefeita, governadora ou presidenta, é outro assunto, que só poderemos levantar se levantarmos junto nossos preconceitos.
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