Quando o assunto é o destino do corpo após a morte de uma pessoa, é comum se ouvir que alguém gostaria de ser sepultado ou cremado. Nas manifestações feitas em vida, é cada vez mais popular no Brasil a escolha pela doação de órgãos, mas a doação voluntária do corpo para a ciência – direito do cidadão previsto no Código Civil brasileiro – ainda é um tabu.
Na opinião da coordenadora do Programa de Doação de Corpos (PDC) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), professora Amira Medeiros, do Centro de Ciências da Saúde (CCS), a baixa adesão da sociedade à prática de doação de corpo para o estudo anatômico está relacionada à falta de conhecimento sobre a possibilidade de doação e a falta de entendimento sobre a importância dos cadáveres para a formação dos futuros profissionais que atuarão em cirurgias, por exemplo, com a missão de salvar vidas.
“A falta de cadáveres é um problema crônico nas faculdades de Medicina brasileiras e isso impacta na formação do conhecimento anatômico. É importante conhecer o corpo humano profundamente para que sejam realizados adequadamente os procedimentos clínicos diagnósticos e cirúrgicos”, destacou a professora, que leciona Anatomia Humana na UFPB.
Diante deste cenário que afeta as universidades públicas, o último mês de junho representou um marco para o Programa de Doação de Corpos (PDC) da UFPB, que recebeu a primeira doação desde que foi criado, em 2019. Em fevereiro de 2020, um potencial doador entrou em contato com a universidade para cadastrar-se no Programa. No último mês, após o falecimento e a concordância da família em relação ao desejo do doador, um homem de 87 anos, o corpo foi entregue à UFPB.
A coordenadora do Programa contou que, antes da criação do PDC, a maioria dos corpos que chegava à universidade tinha origem no Instituto de Medicina Legal (IML). Após não serem reclamados por familiares, os corpos são doados à UFPB ou outras faculdades cadastradas no IML, por meio de um rodízio entre as instituições de ensino. “A UFPB já recebeu doações voluntárias do corpo após a morte, mas foram raras”, acrescentou.
Anatomia Humana é uma das áreas do contempladas no Museu de Ciências Morfológicas da UFPB. Foto: Aline Lins
O Programa
Funcionando no Departamento de Morfologia do Centro de Ciências da Saúde (CCS), o Programa de Doação de Corpos (PDC) está cadastrado na Sociedade Brasileira de Anatomia e faz parte de uma rede que abrange pelo menos 30 programas semelhantes em funcionamento no Brasil, a maior parte deles nas regiões Sul e Sudeste.
No programa da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), o primeiro implementado no país, em 2007, mais de 900 pessoas estão cadastradas atualmente como doadoras voluntárias de corpo. A universidade gaúcha recebe uma média de 12 corpos por ano. Na UFPB, nove pessoas estão cadastradas atualmente como doadoras. Para a professora Amira Medeiros, a função do PDC é precisamente esclarecer dúvidas da população, para que aumente o número de pessoas interessadas em doar seus corpos para o ensino.
Equipe do PDC realiza cerimônias para homenagear às pessoas que decidiram doar seus corpos ao programa após à morte
Quem pode doar
Segundo a coordenadora do PDC, qualquer pessoa pode ser doadora voluntária do corpo, exceto nos casos de morte suspeita ou violenta. Não existe restrição por patologias, como cardiopatias, câncer ou doenças neurológicas, por exemplo.
Como funciona a doação
O primeiro passo para se tornar um doador voluntário de corpo é entrar em contato com o Departamento de Morfologia, localizado no Centro de Ciências da Saúde (CCS), para realizar o cadastro. É necessário preencher o Termo de Intenção de Doação do Corpo, disponível na página do Departamento, e reconhecer firma do doador em cartório, na presença de duas testemunhas. Todos os procedimentos estão descritos no referido endereço eletrônico.
A doação é realizada diretamente entre o doador e a UFPB, conforme previsto no Código Civil brasileiro, no artigo 14 da Lei 10.406/2002 – “É válida, com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte para depois da morte. O ato de disposição pode ser livremente revogado a qualquer tempo”.
“Os trâmites não envolvem o IML ou o SVO [Serviço de Verificação de Óbitos]. Na certidão de óbito, ao invés do nome do cemitério, consta o sepultamento na UFPB, que passa a ser a responsável legal pelo corpo”, explicou Amira Medeiros. Ainda segundo a coordenadora, confirmado o falecimento, os familiares comunicam o fato à UFPB, para o recebimento do corpo na universidade, após a realização do velório, se for o caso.
Quando a manifestação do desejo de doar o corpo não foi registrada em vida, a doação também pode ser feita pela família (também de acordo com o Código Civil), respeitando-se a vontade da pessoa falecida. No caso de crianças, óbito fetal ou neonatal, os pais são responsáveis pela doação.
Criação de um Memorial
Como forma de homenagear as pessoas que doaram seus corpos após a morte, a UFPB deu início, recentemente, a um projeto de construção de um memorial de agradecimento às famílias dos doadores voluntários de corpos. O espaço será erguido ao lado do Departamento de Morfologia, no Centro de Ciências da Saúde (CCS), no campus de João Pessoa. A expectativa é de que o memorial possa ser inaugurado até o final deste ano, segundo a coordenadora do PDC.
“A gente percebeu essa necessidade de gratidão pelos corpos doados e também de ser um ponto de referência para a família, para que as pessoas possam fazer homenagens a seus mortos. Então, a construção desse memorial tem essa função também, não só a gratidão da comunidade acadêmica”, concluiu a docente Amira Medeiros.