Parcela significativa da comunidade médica mundial não tem dúvida: a cura para o HIV é possível e virá dentro de poucos anos. O que, no auge da epidemia, sequer era discutido, hoje é encarado como meta.
— Se me perguntassem três anos atrás se o HIV tem cura, minha resposta seria não. Hoje, é sim — disse, na última quarta-feira, durante uma conferência sobre o tema em São Paulo, Mario Stevenson, chefe da Divisão de Doenças Infecciosas e diretor do Instituto de Aids da Universidade de Miami, nos EUA.
A mudança de opinião parece abrupta, mas ele mal piscou enquanto justificava a nova posição:
— Surgiram tantos estudos nesses últimos anos, e todos tão bem embasados e promissores, que é difícil, como médico, não enxergar um caminho para a cura — ressaltou ele, que é virologista molecular e trabalha com HIV/Aids há mais de 25 anos.
Stevenson foi um dos palestrantes do encontro promovido na última semana pela amfAR, a Fundação para Pesquisa da Aids, na Escola da Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Nessa conferência, foi reafirmado o compromisso da fundação com a iniciativa batizada em 2015 de “Contagem Regressiva”, que estipula o ano de 2020 como o prazo para a descoberta de uma cura para o HIV. Não significa que a população que vive com o vírus começará a ser curada nessa data, mas sim que um método científico de cura deverá ser encontrado e validado.
RESERVATÓRIOS VIRAIS SÃO A CHAVE
Segundo a fundação, que é a maior agência sem fins lucrativos de fomento à pesquisa sobre esse tema no mundo, a “mágica” para chegar à cura é encontrar um meio eficiente de eliminar o que são conhecidos como reservatórios virais. Quando o indivíduo infectado com HIV se trata, tomando os medicamentos antirretrovirais, o vírus não some do corpo, mas fica latente, “adormecido” dentro de algumas células. Nos muitos casos em que o tratamento é bem-sucedido, a carga viral se torna indetectável. Isso é ótimo para o paciente, que, apesar de ter que tomar esses remédios durante toda a vida, não irá sofrer com os efeitos físicos da Aids. No entanto, é ruim para os esforços que buscam eliminar completamente o vírus do corpo.
Isso se explica pelo fato de que, com o HIV indetectável no organismo, os pesquisadores não conseguem saber onde estão as células infectadas. Os reservatórios virais ficam, então, invisíveis. E identificá-los é o primeiro de quatro passos para acabar com o HIV. O segundo é entender, cientificamente, o que mantém esses reservatórios vivos. Depois, mensurar quantas e quais células estão neles. E, por fim, retirar todas elas do corpo.
A reação imediata de quem se depara com esse passo a passo é pensar que a teoria é bem mais simples do que a prática. É verdade, mas essa “rota” já teve êxito uma vez, resultando na única pessoa com HIV que foi curada até hoje: Timothy Ray Brown, mais conhecido como “o paciente de Berlim”. Ele, que é americano, foi infectado em 1995 e, em 2006, descobriu estar com leucemia. Brown começou, então, a se tratar em um hospital ligado a uma universidade de Berlim, e seu médico, o hematologista Gero Huetter, fez nele um transplante de medula óssea de um doador que possuía uma mutação genética capaz de tornar seu organismo imune ao HIV. Tratava-se de uma raríssima mutação no gene CCR5. Desde então, o paciente não só está curado do câncer, como também não toma antirretrovirais e não tem vestígio de HIV.
Mas, então, por que não usar o transplante de medula óssea para curar quem é soropositivo?
— Essa cirurgia tem taxa de mortalidade de 25%, os custos são muito altos e é extremamente difícil conseguir um doador compatível com o paciente que tenha também a mutação no gene CCR5 — responde Mario Stevenson.
Ainda assim, o caso do “paciente de Berlim” melhorou muito a compreensão de como funciona o HIV e de como se poderia reproduzir esse resultado sem passar pelos riscos de um transplante. Aliás, uma pesquisa colaborativa na Europa busca reproduzir o caso de Brown, debruçando-se sobre células-tronco.
Outra iniciativa, de um grupo de pesquisadores da Austrália, envolve a utilização de drogas anticâncer em pacientes soropositivos, estudo que já se encontra em fase de testes em humanos. Existe também um grupo de pesquisa que reúne cientistas de Estados Unidos, Dinamarca e Alemanha que está combinando anticorpos como uma droga. Juntas, essas substâncias tiram o vírus do seu estado de latência — é como se “acordassem” o HIV, que fica adormecido por conta do remédios antirretrovirais, e o obrigasse a sair de seu esconderijo na célula. Essa pesquisa está, atualmente, em testes clínicos. Em outro estudo, também abordando anticorpos, foram realizados testes em quatro macacos infectados. Os animais receberam injeções de anticorpos que forçam o vírus a se manifestar e, em paralelo, são eliminados. Um desses macacos foi curado. O estudo, no entanto, só deve ser publicado em revista científica daqui a pelo menos um mês.
Esper Kallás, professor de Imunologia Clínica da USP, pondera que 2020 está perto demais para garantir uma cura comprovada e viável até lá, mas garante que ela está a caminho.
— Eu acredito que ainda vou estar vivo para ver essa cura. Estamos muito mais próximos do que jamais estivemos — defendeu ele, que participa de um estudo liderado pela Universidade George Washington, nos EUA, chamado “Projeto Believe”, com a intenção de usar agentes de imunoterapia para eliminar reservatórios virais.
O que Kallás mais teme, no entanto, é que os cortes de verbas para pesquisa que têm ocorrido no Brasil e em outras partes do mundo virem um entrave para esses avanços.
Hoje, existem 44 milhões de pessoas com HIV no mundo, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). No último relatório do Ministério da Saúde, foram contabilizados no Brasil 842 mil infectados. No entanto, estima-se que sejam, na verdade, mais de 1,2 milhão, por conta de problemas de testagem.
O Globo
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