A Administração Pública, não é guiada somente por leis infraconstitucionais e mesmo preceitos constitucionais expressos, mas também pelos princípios constitucionais implícitos que informam e condicionam todo o ordenamento jurídico, vez que a legalidade é uma concepção dinâmica que busca conteúdo pleno de realização em todo o sistema, com os meios e recursos a ele inerentes.
A cidadania, hoje melhor informada do ônus constitucional de transparência que propicia o necessário vigor aos atos administrativos (CF., art. 37 e LC n. 131/2009) e consciente dos seus direitos, intui sobre a concepção de valores que são mesmo anteriores às normas legais, sendo ela, concomitantemente, fonte e destinatária dos princípios constitucionais, os quais, por sua vez, erguem-se como vigas-mestras e balizamento às leis que a eles se subordinam e sustentam todo o edifício jurídico.
Na esfera de governo, não há confundir a discricionariedade da ação administrativa que diz com a escolha de meios e soluções intra legem, com arbitrariedade, pois com esta não se compadece o direito do qual desborda.
Discrição é liberdade de escolha dentro da finalidade legal; arbítrio é escolha aleatória, subjetiva, divorciada do escopo legal e, geralmente, configura ato impregnado de desvio de poder ou de finalidade, no mor das vezes, desgarrado do bem comum. E mesmo que se concretize (o arbítrio) através de lei, nem por isso fica o vício afastado.
Não se pode misturar uma coisa com outra: deve a Administração Pública andar nos “trilhos da lei”, corroborando a velha máxima do direito inglês: “rule of law, not men” (regra da lei, não do homem).
Portanto, modernamente, a concepção da legalidade é deveras ampla, impondo à Administração Pública vinculação permanente aos princípios constitucionais de modo a ser concebida e aceita como atividade útil, conveniente, oportuna, dinâmica, viva, legitimando-se a cada ação aos olhos do seu público-alvo, o povo, os cidadãos, sob o olhar atento destes e dos órgãos encarregados dessa vigilância, entre os quais, destaca-se o Ministério Público, que deixou de agir menos por provocação e mais por dever legal.
Agora que foi encerrada a greve do fisco, mister uma rápida análise sobre alguns aspectos jurídicos que a envolve.
Primeiramente, é preciso entender a hierarquia das leis e suas consequências práticas: Constituição Federal, leis complementares federais, leis ordinárias, etc, prevalecem sobre normas estaduais com as quais devem guardar simetria e conformidade, principalmente com as duas primeiras e os princípios constitucionais (CF., art. 25, na redação dada pela EC 05/1995).
Segundo, em termos estritamente jurídicos, a polêmica sobre o direito deferido na Lei do Subsídio, motivo da greve do Fisco, é de fácil deslinde: há dois interesses jurídicos em conflito que devem ser ponderados à luz da Constituição e diploma legal que a complementa (Lei de Responsabilidade Fiscal – LC n. 101/2000), para se saber qual deve ser flexionado para que o outro prevaleça, por seu maior escopo e proteção.
In casu, a resposta é: deve prevalecer a norma federal porque tutela obrigação-interesse constitucional, a saber, o equilíbrio financeiro do ente político federado, mais forte e abrangente do que os interesses abrigados naquela lei estadual, que diz respeito a uma categoria – importante, é verdade – de servidores públicos, mas que não pode, à toda evidência, preponderar sobre os de todo o funcionalismo e o do funcionamento regular do Estado dependente do equilíbrio financeiro de suas contas para atendê-los.
Terceiro, em ocorrendo a premissa anterior, ainda assim, a prevalência do interesse estatal é limitada no tempo, de modo a que obtidas as condições financeiras de equilíbrio orçamentário, deve o Estado cumprir àquela lei e repassar os valores que se obrigou a pagar, pois é inconcebível que tal episódio se torne uma rotina, um passaporte, um pretexto para o governo generalizar descumprimento de leis e decisões judiciais.
Quarto, a condição que leva à exceção, deve ser provada tecnicamente pela análise das contas estaduais e a demonstração contábil de que se a lei – neste momento — for cumprida e repassada a complementação pecuniária aos contra-cheques dos servidores do Fisco, estará ultrapassado o limite de gastos recomendado na Lei de Responsabilidade Fiscal.
Quinto, do contrário, a inobservância da lei poderá revelar ato arbitrário e ilegal, incidindo, em tese, o governador, em crime de responsabilidade (CE., art. 87, VI), passível de julgamento pela Assembléia Legislativa na forma do art. 88 da Carta Estadual, o que é sempre difícil de configurar e muito menos ainda de ocorrer (o julgamento) face a maioria que ali detém.
Sexto, quer isto significar, meritoriamente, que se discorda da lei do subsídio por achar que ela fere a Constituição Federal, cabe ao governador manejar Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (CF., arts. 102, I, “a” e 103, V) visando afastar sua validade e incidência, inclusive em sede liminar.
O e. Tribunal de Justiça não pode, via ação direta, declarar a inconstitucionalidade de lei estadual contestada em face da Carta Magna Federal, apenas e se, a lei ferir a Constituição do Estado (CE., arts. 86, XIX e 105, I, “a”), embora possa fazê-lo, incidentur tantum, em sede de controle difuso, o que não parece ser o caso, data vênia.
Em conclusão, para o governador deixar de cumprir a própria lei que o Estado criou, deve buscar ou (i) a sua revogação e/ou substituição por outra de igual categoria – respeitados eventuais direitos adquiridos durante a sua vigência – ou então (ii) pleitear a declaração de sua inconstitucionalidade, caso em que não haverá direitos individuais a serem resguardados, já que os efeitos serão ‘ex tunc’, retroagindo à data da promulgação, assim como a obrigação de os servidores do Fisco devolverem as parcelas recebidas.
A noção de nulidade da lei e a sua impossibilidade de gerar efeitos válidos face a Constituição é antiga, vem do Juiz Marshall da Suprema Corte americana: “Uma lei contrária à Constituição é nula”.