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As Dores da Legalidade (II)

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Já agora, mister dedicar um ligeiro olhar e sentir acerca do instituto da legalidade à luz da atual Lex Mater, destacando a construção doutrinária e jurisprudencial que, superficialmente, tentarei melhor resumir, num próximo e último artigo sobre o tema, com diretiva ao momento pelo qual passa a nossa pequenina e briosa Paraíba.

Não há dúvida que os mais de vinte anos de ditadura militar enfraqueceram as práticas democráticas iniciadas sob a Carta Política de 1946, cuja vigência temporal foi de apenas 18 anos (em 1964 praticamente deixou de viger), causando, no pós-64, a partir da Constituição de 1967 e principalmente da Emenda Constitucional nº 1/69 (baixada pela Junta Militar), a hipertrofia do poder executivo da União e, em menor grau, dos Estados, em prejuízo dos poderes Legislativo e Judiciário, males que foram mitigados com a CF/88, mas ainda não totalmente eliminados.

Entretanto, forçoso reconhecer, sob o pálio da atual Constituição, certa melhora no exercício da competência legislativa do Congresso Nacional a despeito do instituto das medidas provisórias usadas com exagero pelo chefe do executivo federal de onde provém a iniciativa de mais 75% das leis ali aprovadas.

O seu momento culminante como órgão realmente representativo da sociedade brasileira fora o julgamento, pela primeira vez em nossa história, de um presidente da República (Collor de Mello) contra quem decretou o impeachment para o exercício do cargo.

Tal melhora pode ser comprovada com a vinda à lume de diversos diplomas legais que miraram o controle da atividade pública e a crescente importância para a população do Poder Judiciário e do Ministério Público, ambos revigorados pela CF/88, no que diz com o controle da licitude da atividade pública e atuação concreta do direito, que por anos a fio estiveram relegados a segundo plano.

Importante papel no controle externo e fiscalizador da legalidade das despesas públicas passou a ser exercido pelas Cortes Federal (TCU) e Estaduais de Contas (TCE’s) e em alguns Municípios pelos TCM’s, pois decisões suas que imputem débito ou multa aos responsáveis por malversação de dinheiro público têm força de título executivo (CF., art. 70, § 3º), constituindo um grande avanço à efetividade desse controle.

Na esfera do Poder Executivo, uma série de diplomas legais expôs o exercício da ação administrativa aos olhos vigilantes do Ministério Público e daqueles Tribunais, nas respectivas esferas de governo e competência, criando, com isso, condições objetivas de controle por parte da sociedade, sendo destaques as que dispõem sobre emprego de verbas públicas, responsabilidade fiscal, ação civil pública e improbidade administrativa.

Não há qualquer dúvida sobre o grande contributo da tutela judiciária na incorporação de valores e princípios constitucionais à concepção da legalidade, como viga mestre do Estado Constitucional de Direito.

Os norte-americanos, que têm a sua bicentenária Constituição como fonte viva de todo o sistema jurídico, chamam esse fenômeno de living constitution, ou seja, o direito que lhe é subsequente é “vivente”, dinâmico, acompanha a evolução da sociedade, concepção essa assim entendida pelo jurista Miguel Reale, para quem “(…) o direito autêntico, não é apenas declarado mas reconhecido, é vivido pela sociedade, como algo que se incorpora e se integra na sua maneira de conduzir-se”. (Lições Preliminares de Direito, 7ª ed., São Paulo, Ed. Saraiva, 1980, pp. 112-3).

Por conta disso, é que lá nos EE.UU., não houve até hoje necessidade de substituir a velha Constituição de 1787 por outra; as leis vão se lhe adaptando com base nos princípios por ela consagrados, cabendo a legislação infraconstitucional realizar os seus fins democráticos em prol do povo e da nação e a Suprema Corte, quando provocada, dizer sobre sua constitucinalidade.

Aqui, qualquer mudança de rumo quase sempre importa em emenda à Constituição que depois de sua promulgação já incorporou nada menos de 67 emendas constitucionais até 22/12/2010.

No Brasil de tantas normas legais e no vácuo legislativo do Congresso e dos defeitos, vícios e inconstitucionalidades de leis ali aprovadas, tal fenômeno, que alguns chamam de judicialização da atividade político-legislativa, parece cada dia mais frequente, à proporção que o colendo Supremo Tribunal Federal – livre das amarras de funcionar como uma terceira instância – cumpre sua primordial missão de declarar à nação a vontade da Constituição em paradigmas-jurisprudenciais que passam a integrar o próprio direito constitucional, como bem anotou o preclaro Ministro Gilmar Mendes, nos seguintes termos:

“(…) É de todo oportuna a observação de Juan Fernando López Aguilar, a nos dizer que, hoje em dia, o direito constitucional já não é apenas o que prescreve o texto da Lei Maior, mas também a bagagem de padrões hermenêuticos desse bloco normativo incorporada na jurisprudência constitucional”. (Curso de Direito Constitucional, Ed. Saraiva, 4ª ed., 2009, p. 144).

Por isso mesmo, é que os autores modernos já falam de um neoconstitucionalismo, que, no trabalho de concretude da prevalência da Constituição,

“(…) Vive essa passagem, do teórico ao concreto, de feérica, instável e em muitas ocasiões inacabada construção dos instrumentos por meio dos quais se poderá transformar os ideais da normatividade, superioridade e centralidade da Constituição em técnica dogmaticamente consistente e utilizável na prática jurídica. Nesse contexto se inserem, por exemplo, as discussões sobre a eficácia dos princípios constitucionais.” (Direitos Fundamentais: Estudos em Homenagem ao Prof. Ricardo Lobo Torres(diversos autores), “Neoconstitucionalismo, Direitos Fundamentais e Controle das Políticas Públicas”, por Ana Paula Barcellos, Ed. Renovar, 2006, pág. 33).

Estou convencido, data vênia, diante da voluntas constitutionalis de realizar o bem comum como dever político-administrativo da nação e dos objetivos fundamentais estruturantes da República Federativa do Brasil (CF., art. 3º, incisos I a IV), que os cidadãos brasileiros têm um novel direito fundamental implícito na Constituição: o direito ao bom governo.

Em consequência, impõe-se reconhecê-lo como parâmetro de amplo controle de constitucionalidade e inconstitucionalidade de leis, por possuir inegável natureza normativa-finalista.

No ponto, descortina-se larga via fiscalizatória à atuação do Ministério Público, como instituição responsável pela defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis (CE., art. 125; CF., arts. 127 e 129), tudo com o necessário concurso do Poder Judiciário mirando o que o jurista português J.J. Gomes Canotilho chamou de “solidificação da legalidade democrática”.

No seu incansável apostolado em defesa da legalidade, advertiu Ruy Barbosa:

“Em verdade, em verdade vos digo: o Poder forte é aquele cujo amor próprio capitula à boa mente da lei. A força da força tem a fraqueza incurável na desestima da Nação que a odeia. Fazei-o dócil à justiça. Eis aí a grande missão do Judiciário: docilizar o Poder pela correta interpretação constitucional (das leis), pois que de suas manipulações é que se iniciam os abusos, e fazer vingar a lei, é apanágio do seu mister e sua razão de ser”.
 

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