Nos últimos dias do ano findo se observou a paralisação do Congresso Nacional, incapaz de votar o orçamento geral da União face desejo da maioria de antes apreciar veto da presidente Dilma Rousseff à mudança no sistema de partilha dos recursos advindos da exploração do petróleo do pré-sal entre Estados produtores e não-produtores (royalties), alcançando ampla repercussão a decisão do e. ministro Luiz Fux do STF no sentido de que isso só poderia ser feito se e quando votados mais de 3.000 vetos que esperam por apreciação há anos.
Tal decisão causou mal-estar no Legislativo que alegou interferência judicial em matéria interna corporis que, de ordinário, lhe é privativa. Não entrarei no mérito se é constitucional ou não aquela decisão monocrática, isso melhor dirá os demais ministros da Corte Suprema quando retornarem do recesso de final de ano e férias de janeiro.
Em âmbito local também causou estremecimento entre os Poderes Executivos e Legislativo a mudança do regimento da Assembléia que admitiu o quorum da maioria simples para rejeitar parecer do Tribunal de Contas que tenha aprovado as contas do governador do Estado, sendo, ao meu modesto entendimento, diante da nova legislação que prevê a sua inelegibilidade quando isso ocorre, flagrante casuísmo, mais, inconstitucional, vez que embora silencie a respeito as Constituições Estadual e Federal, esta dispõe que no caso de prefeito, similar parecer requer quorum qualificado de 2/3 para ser rejeitado, não podendo, à toda evidência, um governador ser alcançado pela inelegibilidade por decisão tomada através de tão reduzido número de parlamentares, mais ainda quando as contas foram aprovadas pela Corte de Contas Estadual.
Temos aí mais um exemplo que desembocará nos tribunais. Por essas e outras, como pretende retratar o título acima, observa-se no Brasil pós-Constituição de 1988 uma maior interferência judicial na vida do país, que basicamente decorre da abertura da jurisdição à cidadania, melhor contemplada com direitos fundamentais e da sujeição mais rígida da atividade pública ao Estado de Constituição tão bem estudado e aplicado pela doutrina e judiciário alemães.
Grande parte dessa interferência decorre pura e simplesmente de omissão legislativa caracterizada, para usar as palavras do Supremo “de retardamento configurador de abuso do direito legal de não legislar” (MI 361/RJ, Pertence) e da sofrível qualidade das leis aprovadas, aspectos que levam a questionamentos perante o Judiciário e ao aumento da litigiosidade que o próprio poder público dá causa.
Ora, para que a norma seja válida não basta atender requisitos formais, deve, também, numa visão mais ampla, estar adequada à Constituição como um todo, o que envolve tanto o princípio da legalidade propriamente dito como os demais princípios e regras nela contemplados.
Foi a Carta Política, cognominada por um dos seus principais mentores, o saudoso deputado Ulisses Guimarães, de “Constituição Cidadã”, que consagrou um rol de direitos civis, sociais e econômicos que dá ensejo ao ativismo judicial, pois sua concretização dele depende, pena de representarem apenas regras simbólicas e vã demagogia constitucional.
Em tal contexto, tem crescido a importância do Judiciário como poder-garante de tais direitos, mas sem que estivesse devidamente aparelhado para a nova realidade e sem que tivéssemos uma tradição mais forte nesse rumo. Não é por outra razão, que ouvimos as sandices do atual e também do provável futuro presidente da Câmara dos Deputados afirmando que não cumprirão a decisão do STF que decretou, em razão da condenação criminal, a perda do mandato dos deputados mensaleiros.
O certo é que diante de omissões e erros de toda ordem, vem sendo o Judiciário forçado a exercer um ‘ativismo judicial’ em consequência, como dito, da falta de regulamentação de matérias em âmbito infraconstitucional, a chamada omissão legislativa, reparável, de regra, através de mandado de injunção (MI) e de ação descumprimento de preceito constitucional (ADCP); em outros casos, mediante ação declaratória de inconstitucionalidade, inclusive por omissão (ADI) e mesmo mandado de segurança (MS).
Realmente, de parte do Poder Legislativo, se observa grande inércia potencializada por um sistema congressual quase que todo dominado pelo Poder Executivo de onde provém 75% da iniciativa de leis, via medidas provisórias (CF., art. 62), que vão sendo simplesmente reeditadas ad eternum, acumulando-se inapreciadas, bem como os vetos presidenciais.
Na verdade, o/a presidente governa sem que suas iniciativas de leis e regulamentos sejam apreciadas pelo Congresso Nacional, com exceção de umas poucas, como a lei orçamentária anual, quase sempre votada de afogadilho no final de cada ano.
Se antes havia os famigerados decretos-leis à disposição do presidente da república para legislar amplamente, agora tem as abusivas medidas provisórias baixadas como se dá milho às galinhas para todo tipo de matéria que nada tem de relevante e urgente, como exige a Constituição.
Pouco a pouco – ano após ano, basta ver o número crescente de MP’s – foi definhando a iniciativa de leis por parte de deputados e senadores, cuja aprovação depende quase sempre do prévio “de acordo” do chefe do Poder Executivo, o que por si só, constitui ponderável não-incentivo à atividade parlamentar e, em certas matérias, uma barreira intransponível a sua aprovação.
Os parlamentares da base do governo, às vezes conseguem, com o beneplácito do palácio do planalto, incluir nos textos das MP’s matérias que, de ordinário, deveriam ser tratadas através de projetos de leis, o que só contribui para a salada geral e disparidade de matérias tratadas numa mesma MP, causando confusão e perplexidade jurídicas.
Ora, é consenso que a vinda a lume de qualquer norma legal deve obedecer a rigoroso e prévio processo legislativo para que possa adentrar no ordenamento jurídico e alcançar validade e eficácia.
As medidas provisórias – reservadas, como dito, às hipóteses de relevância e urgência — desrespeitam as minorias parlamentares e também as maiorias cooptadas, desvalorizam o labor legislativo e empobrecem o parlamento tornando-o refém da presidência da república, conforme bem comprovam as estatísticas alusivas às atividades das duas casas do congresso nacional.
No país, solidificou-se uma metodologia de cooptação de partidos políticos baseada na divisão e loteamento da Administração Pública em feudos que funcionam como distribuidores de vantagens econômicas para os seus sócios, dando ensejo ao aprofundamento da corrupção institucionalizada como verdadeiro método de governo. Isso bem comprovou o julgamento do ‘mensalão’ e também as nossas práxis políticas de um modo geral.
Outro dia, o ex-presidente e atual senador Collor de Mello, de forma tardia, reconhecia que “(…) nem sempre o desejo do Olimpo, que é o Palácio do Planalto, é o melhor caminho para a nação”.
A verdade é que os partidos – quase sempre — pouco se interessam por lutas e bandeiras que consultem os interesses nacionais e mais pelo exercício de nacos de poder que lhes permitam obter proveitos nada republicanos das verbas públicas. A isso chamei em artigo anterior de “método brasileiro de corrupção”, o qual, tem contaminado o tecido sócio-econômico da nação e enfraquecido o que ainda resta de patrimônio ético.
Por outro lado, as políticas sociais compensatórias – necessárias, diga-se – também se prestam à formulação de uma doutrina de Estado-provedor cujo símbolo maior é o/a presidente da república que aufere os dividendos políticos e o apoio necessário ao fortalecimento do nosso presidencialismo imperial, sem que sejam acompanhadas de uma avaliação mais rigorosa.
O Poder Executivo, entre nós, em face de sua hipertrofia histórica, sempre ditou as regras aos demais poderes, por possuírem estes, autonomia nominal e não-efetiva, sendo sua propalada independência lorota para inglês ver e mote para discursos que agradam o ego de quem os presidem.
Cabe ao Judiciário, dentro do seu papel constitucional, velar pela independência e harmonia entre os outros dois poderes e ele próprio, de modo que o respeito à lei impregne de tal forma a consciência da nação que passe a ser visto como a coisa mais natural do mundo, como, aliás, o é em muitos países.
Voltarei ao tema.