Caros leitores, muito já se falou e escreveu sobre a ruidosa ação da prefeitura municipal de João Pessoa que culminou com a destruição da pista de pouso do aeroclube da Paraíba situado em área urbana do aprazível Bairro do Bessa, nesta capital, considerada de utilidade pública pelo Decreto Municipal nº 7.093/2010 para fins de desapropriação.
Não discutirei o apontado açodamendo da ação, apenas registro que é uma pena que tenha ocorrido, pois trouxe uma carga de censura à legítima pretensão desapropriatória e a sua licitude respaldada em liminar de Juiz de Direito estadual que permitiu a imissão na posse do imóvel (sem condicioná-la à transferência do equipamento para outra área), depois suspensa pelo ínclito Des. Abraham Lincoln presidente do TJ/PB e decretada sua nulidade pelo em. Des. Fred Coutinho face incompetência da justiça comum. Nem tampouco preço, pois aqui não é a sede própria para isso.
Abordarei sim, aspectos da respeitável decisão da douta Juíza Federal Cristina Garcez que antecipou a tutela de ação ordinária, suspendendo, na prática, a desapropriação, diante da prevalência do interesse da União por ter a associação civil proprietária do Aeroclube sido considerada de utilidade pública por legislação do governo federal, permitindo, assim, a reconstrução da pista (necessária, diga-se).
Conforme informações veiculadas na mídia teria a il. juíza federal afirmado ou admitido que “a consolidação de seu caráter de utilidade pública federal advém de diplomas normativos federais, como o Decreto-Lei nº 205/67, o Código Brasileiro de Aeronáutica (Lei Federal nº 7.565/86) e a Lei Federal nº 11.182/2005 (Lei de Criação da ANAC)”.
É aquela tal coisa, ao que tudo indica, as normas de caráter abstrato e geral invocadas pela ínclita Magistrada no decisum não se apresentam em perfeita sintonia com a realidade fática no que diz com o direito à permanência do equipamento aeroviário, pois quando o Aeroclube começou a operar naquela área, o Bairro do Bessa praticamente inexistia.
Já agora, passados anos e anos, está literalmente cercado pelas edificações residenciais e dentro do perímetro urbano com aptidão de causar uma tragédia que pode ser evitada. Isso, é fato.
Portanto, com todo respeito, há certo descompasso entre a alegada utilidade pública e/ou interesse federal no funcionamento do Aeroclube e “o peculiar interesse municipal” que, data vênia, deve prevalecer por sua melhor conformidade pública com a destinação da área ao Parque Parahyba.
Como nos legou os romanos, “ex facto oritur jus”. Ora, se do fato nasce o direito, uma leve diferença do fato pode determinar uma grande diversidade do direito (modifica facti differentia, magnan inducit juris diversitatem).
Para mim, está dissociado da realidade fático-jurídica o triunfo momentâneo do interesse do Aeroclube a titulo de utilidade pública federal sobre o peculiar interesse público municipal, concessa venia.
Outrossim, em termos estritamente jurídicos, não está a área afetada pela qualidade de bem público federal, sendo o alegado interesse da União reflexo e indireto, ao contrário do interesse da municipalidade que é eminentemente público e direto, data vênia.
Desse modo, no comento ao tema, lançarei mão de argumentos sob a baliza jurídica do “peculiar interesse do município”, concepção assentada em garantia constitucional que retroage à primeira Constituição Imperial de 1824, que pelo seu artigo 71 a introduziu no ordenamento pátrio.
Como dito, a importância desse instituto sobressaiu mesmo sob as formas de estado unitário e de governo imperial, tendo sido aquele antigo Diploma Magno realmente sábio ao assegurar aos municípios brasileiros o devido respeito a tudo que relacionado ao peculiar interesse local.
Com o advento da república em 1889 e do modelo de estado federado em 1891, dispôs a Constituição desse ano, o seguinte:
“Art. 68 – Os Estados organizar-se-ão de forma que fique assegurada a autonomia dos Municípios em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse.” Grifei.
Desde então, os municípios brasileiros passaram a constituir “células fundamentais do Estado” aptos a administrar os serviços públicos de natureza local. Sobre eles, assim discursou Ruy Barbosa, com substanciosa eloquência, em 20/11/1918, durante solenidade na Bahia, verbis:
“Não há corpo sem células. Não há Estado sem municipalidades. Não pode existir matéria vivente sem vida orgânica. Não se pode imaginar existência de nação, existência de povo constituído, existência de Estado, sem vida municipal”.
O saudoso político, jurista e ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, o paraibano Oswaldo Trigueiro de Albuquerque Mello o definiu como “a unidade geográfica divisionária do Estado, dotada de governo próprio para a administração descentralizada de serviços estaduais e para o tratamento de interesses locais” (O Regime dos Estados na União Americana, Rio de Janeiro, 1942, p. 239).
Aquele artigo da CF/1891, foi literalmente repetido pela Lex Mater de 1934 (art. 13) e pela de 1937 (art. 26), assim também pela Constituição de 1946 (art. 28), silenciando a seu respeito a de 1967, mas o reintroduzindo a EC nº 01/69 (art. 15, II).
A Constituição em vigor, alçou oficialmente o município à categoria de ente político federado (arts. 1º. e 18). Disse oficialmente, porque na prática, a auto-gestão municipal já era bastante ampla e descentralizada quanto à disciplina de matérias de seu peculiar interesse.
Ademais, foi-lhe conferida autonomia política, gerencial e financeira, e competência para legislar sobre matérias de interesse local, como, verbi gratia, declarar área encravada em seu território de utilidade pública para fins de desapropriação e dispor sobre a organização e a prestação, sob regime de concessão ou autorização, dos serviços públicos de natureza local (CF., art. 30, I e V).
Isto, ao meu sentir, engloba a concepção do peculiar interesse local de que é portador, a fim de desapropriar àquela área urbana, por utilidade pública, para a instalação do parque municipal Parahyba destinado ao uso de sua população fixa e flutuante, como turistas, por exemplo, já que sua fruição, como bem de uso comum, se sobrepõe a qualquer outro interesse econômico individual de pessoas, grupos e associações civis, bem como, aos interesses mediatos e subjacentes da União que podem ser atendidos em local mais adequado a um novo aeroclube, por evidente.
Como visto, é tradicional em nossa ordem constitucional deferir aos municípios a administração de tudo que for do seu peculiar interesse, como titular de direitos oponíveis aos outros entes federados, embora deva reconhecer que ainda subsiste, entre nós, uma cultura jurídica privilegiadora da União, que dispõe de sua própria justiça, no sentido de atrair para si, qualquer matéria que revele, por mais tênue que seja, algum interesse seu (CF., art. 109, I), cabendo à justiça federal afirmá-lo presente ou não (STJ/Súmula nº 150).
Com todo respeito, parece ser o caso, do aeroclube da Paraíba.
Tampouco se pode negar que o ocorrente “interesse da União”, por menor que se afigure, é comumente apresentado pelas partes interessadas e seus procuradores como hipossuficiente para fins de remeter a segundo plano o peculiar interesse público municipal e mesmo estadual que assim quedam-se feridos e desrespeitados em homenagem ao formalismo de um pacto republicano-federativo ainda longe de realizar o seu objetivo maior, desde que transplantado em 1891 de fontes norte-americanas que idealizaram o estado, lá confederado, aqui federado, sob o pálio de “a more perfect union” como sinalizado na US Declaration of Independence de 1776.
Em sã consciência, a ninguém é dado ignorar que, in casu, ocorre apenas interesse subjacente, secundário e não essencial da União, o qual, desnuda-se flagrantemente contrário a ratio constitutionalis em que fundado o peculiar interesse municipal de dotar a cidade do parque Parahyba onde hoje ainda funciona o Aeroclube.
Em vista disso e salvo melhor juízo, não deverá prevalecer na justiça federal motivação que obstaculize sine die o trâmite da ação desapropriatória à guisa de utilidade pública federal daquela área hoje em dia inadequada à serventia de pouso e decolagem de aeronaves e sobre a qual tem o Município de João Pessoa o direito de adequá-la aos fins e interesses públicos superiores da comunidade, edificando equipamento urbano voltado ao lazer e bem estar da população.
A matéria jurídica clama, aliás, por uma espécie de update decisório e quiça à condução de nova jurisprudência ou mesmo novel entendimento menos formalista e mais substancial com base na ponderação dos intereses conflitantes, de modo a prevalecer o tradicional e aqui real e contemporâneo interesse municipal e não o quase ficto interesse federal.
Como registrado em Eclesiates: “A sabedoria é a capacidade de discernir a verdade por trás das aparências. Quem é capaz disso não se perturba diante dos conflitos”.
Parece salutar o desiderato da atual administração municipal de adotar uma política pública voltada a destinar áreas urbanas sub, mal, imprópria ou sem utilização alguma, à edificação de parques e outros equipamentos de lazer e cultura, como praças, quadras esportivas, etc, como similares encontrados em cidades como Curitiba, São Paulo, Brasília, Londres, Nova York, Paris, Toronto e Vancouver, para citar algumas que conheço.
Se pudesse fazer uma sugestão ao Exmo. Sr. Prefeito de João Pessoa, seria no sentido de também destinar uma área de grande visibilidade urbana para a construção de uma moderna biblioteca pública municipal que marcasse a paisagem, a cultura e fosse ponto de referência permanente para a cidade e as gerações futuras.
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