Nestes dias que antecedem o pleito municipal envolvendo a administração de quase 5.000 municípios do país, abordarei, em dois artigos, tema que a todos acredito interessar: o direito ao bom governo, contextualizando-o na atual Constituição Federal como verdadeiramente exigível pelo povo.
Obviamente não se pode pretender nível de administração e desenvolvimento de padrão suíço. O exigível é que as cidades sejam administradas de acordo com a lei e os recursos públicos aplicados com licitude e eficiência.
A democracia como regime de governança política foi uma lenta e dura conquista precedida de lutas e conflitos sangrentos que ainda hoje podem ser observados nos países que a almejam, como é o caso, da Síria, Iraque, Egito e Iêmen, entre outros.
Tampouco há dúvida, de que em termos originários, sua concepção remonta à Grécia antiga de Platão, Sócrates, Aristóteles e Péricles onde se revelou mais aberta e receptiva no que diz com a participação dos “cidadãos livres” nos assuntos de governo em contraposição à rigidez militarista de impérios e reinos do oriente, como os de cultura árabe e chinesa e alguns da própria europa.
Entre os povos ocidentais, os anglo-saxões, a partir da idade média e os de origem latina, especialmente franceses, foram os que mais contribuíram para a expansão de sua doutrina como “um valor essencial à liberdade”. Foram eles os primeiros a bem entender a existência de uma moral social que subordina à atividade pública.
Por isso, do século XVII em diante, notadamente após o surgimento da industrialização na Inglaterra, passou a existir uma aspiração inevitável de realização daquele valor, como corolário dos direitos fundamentais do homem, devendo-se destacar a relevante contribuição dos norte-americanos que já abordei neste espaço.
A partir de então, desnudou-se sua incompatibilidade com o absolutismo reinante infenso às manifestações populares no sentido de admitir efetiva participação do povo no governo de modo a influir sobre seu próprio destino, sendo para isso, requisito prévio, “a despersonalização do Estado” que então carecia de instituições adequadas ao seu funcionamento.
No regime absolutista os indivíduos tinham apenas deveres e obrigações perante o monarca, enquanto na nova ordem inaugurada com o Estado de Direito passaram a titularizar direitos e interesses oponíveis ao próprio ente estatal. Em um primeiro estágio, como direitos de natureza subjetiva, definido por Jellinek como “o poder da vontade humana que, protegido e reconhecido pelo ordenamento jurídico, tem por objeto um bem ou interesse” e, ao depois, como direitos públicos fundamentais inerentes à cidadania.
Quem almejar visitar ou revisitar a obra de pensadores como o citado e mais Hobbes, Locke e Montesquieu, poderá obter melhor entendimento do que se fala neste exíguo espaço.
Realmente, desde o início, com todo o respeito aos que pensam diferentemente, não há ideologia política mais compatível com a própria natureza humana do que a democracia, pois só ela se revelou apta a afastar o domínio e a opressão ao povo, conditio sine qua non à formatação do moderno Estado Democrático de Direito na América e na Europa.
A célebre definição americana de governo democrático, como sendo “o governo do povo, pelo povo e para o povo”, encerra conteúdo axiológico não apenas simbólico, mas “real promessa-objetivo” a ser executado dentro dos parâmetros da democracia representativa na busca permanente de uma sociedade plena de justiça no mais amplo sentido do termo, como meta exigível de governo.
Tal conceito foi recepcionado por quase todas as nossas Constituições da era republicana, a começar pela de 1891, rezando o parágrafo único do artigo 1º da atual, que “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”, logicamente, em seu benefício, é obvio.
O que tem ocorrido, entre nós, infelizmente e sob condenável inércia das instituições, é que muitos representantes do povo “esquecem” esse básico primado democrático, o que leva à distorções escandalosas que clamam por medidas saneadoras, como objetiva a Lei da Ficha Limpa (LC n. 135/2010) e a Lei n. 12.527/2011, apelidada de “lei da transparência”.
Pode-se mesmo dizer que esses diplomas legais, solidificam critérios moralizadores das atividades política e administrativa dispensáveis nas democracias desenvolvidas como as inglesa, americana, francesa, canadense, alemã, sueca e norueguesa, entre outras.
É que nesses países, de regra, é simplesmente inconcebível “segredos na administração da coisa pública” e a alguém condenado por um Juiz ou Tribunal integrante do Poder Judiciário pleitear qualquer cargo político-eletivo, pois os eleitores não o elegerão de jeito nenhum.
A par dos benefícios que virão como forma de educar o povo – naquilo que os britânicos chamam de legal education – e os próprios candidatos a homens públicos, é deveras salutar o nascimento de um novo parâmetro judicial de resposta à endêmica corrupção que assola o país ofertado pelo colendo Supremo Tribunal Federal.
Estou convicto que, no ponto, foi graças a ampla divulgação do chamado “escândalo do mensalão” através da imprensa e das expectativas acalentadas pelo povo num julgamento justo e com consequências sancionatórias, que se está decretanto a condenação dos réus.
É salutar que o Tribunal Magno da nação, em nome da ética republicana, pratique um certo “ativismo judicial” desde que condizente com os valores essenciais da Constituição.
Num próximo artigo, encerrarei o tema.