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Parte do Brasil pode ter atingido imunidade coletiva contra coronavírus, dizem pesquisadores

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Alguns lugares do mundo, entre eles cidades e estados do Brasil, dão sinais de que podem ter alcançado a chamada imunidade coletiva ou de rebanho contra o coronavírus, dizem cientistas.

Ela é alcançada quando o vírus não consegue mais continuar a se propagar com força porque não há pessoas vulneráveis em número suficiente para sustentar uma epidemia.

O número de casos diários caiu e não voltou a crescer significativamente por mais de um mês, caso de Rio de Janeiro, São Paulo e de Manaus, por exemplo. No mundo, Nova York, Londres e Mumbai são exemplos.

O padrão observado nesses lugares em nada surpreende a biomatemática portuguesa Gabriela Gomes, da Universidade de Strathclyde, na Escócia. Ela é a líder do grupo de epidemiologistas que desde março defende que o limiar da imunidade coletiva para o Sars-CoV-2 é de cerca de 20% — e não de 70%, como indicavam os modelos tradicionais.

Gabriela explica que o limiar não é o mesmo em todos os países e varia até mesmo dentro deles. Principalmente, em países grandes como o Brasil e os Estados Unidos.

A imunidade coletiva é modulada pelo distanciamento social. Não se pode olhar um país como um todo e cada região dentro dele terá um limiar, diz ela.

— Só teremos imunidade coletiva ampla com vacina. Mas a força da pandemia já está reduzida em algumas partes do mundo, como na Europa e em parte da China. Também em regiões dos EUA e do Brasil, onde cada estado deve ser pensado como um país. Estamos mais próximos de voltar à normalidade. É importante que isso seja comunicado às pessoas — frisa ela.

Segundo Gabriela, Manaus, Rio de Janeiro e São Paulo parecem caminhar para a imunidade coletiva. Nesses lugares, o distanciamento social foi limitado ou baixo, não houve rastreamento de contatos. Ainda assim, o número de novos casos caiu e, segundo Gabriela, isso é sugestivo de imunidade coletiva.

Imunidade de rebanho não deve orientar políticas de governo
Cientistas fazem a ressalva de que a imunidade coletiva é um indicador de tendência da pandemia, mas não deve orientar políticas de governo. Até porque países severamente afetados pelo coronavírus, como Espanha e Brasil, não têm mais do que 10% da população infectada, o que faz com que o número de vulneráveis seja imenso.

Pesquisadores discutem se tal imunidade foi de fato alcançada e quanto tempo vai durar, já que não se sabe o quão prolongada é a defesa adquirida contra o coronavírus. Além disso, mesmo com imunidade coletiva, muitas pessoas ainda podem morrer de Covid-19. Continua a haver casos, porém, em menor quantidade.

No Brasil especificamente, outra possibilidade é que a doença agora se propague mais entre os jovens, que saíram do distanciamento. Eles são infectados, mas raramente adoecem com gravidade e, como a testagem é baixíssima no país, esses casos não são notificados.

A OMS alertou esta semana para o risco de ressurgência na Europa. Nas duas primeiras semanas de agosto, a Europa registrou 40 mil novos casos a mais do que nas duas primeiras semanas de junho, quando os casos chegaram a seu nível mais baixo.

Infecção persiste, mas se espalha num ritmo mais devagar
Integrante do grupo de Gabriela Gomes, Rodrigo Corder, doutorando do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB/USP), explica que a imunidade coletiva não é o momento em que a infecção acaba, mas, sim, quando ela passa a se espalhar mais devagar.

— E mesmo quando é atingida, o distanciamento social e a máscara são necessários para que continue a reduzir efetivamente e não tenhamos uma subida de casos. Enquanto não temos vacina, o melhor cenário é interromper a transmissão dessa forma — enfatiza Corder.

Ele acrescenta que se há muitos casos, ocorre uma queda, e, mesmo com o fim das restrições de distanciamento, o número de novas infecções não voltar a subir, pode-se dizer que a imunidade coletiva foi atingida.

— Temos que retomar a nossa vida com cuidado. Voltar às escolas, às empresas, às compras, mas com controle do distanciamento e vigilância sobre surtos — diz Gabriela.

O modelo de projeção do grupo dela é baseado num cálculo complexo que leva em conta a heterogeneidade da população, isto é, que as pessoas têm graus de exposição (mobilidade, atividade profissional) e suscetibilidade (idade ou doenças pré-existentes, por exemplo) diferentes.

Para ela, os modelos tradicionais tendem a superestimar a magnitude da pandemia porque partem do princípio que a população é homogênea, fazem simplificações.

— Simulamos epidemias com diferentes coeficientes de infecção e calibramos à medida que os dados vão surgindo. É um cálculo mais complexo, não foi bem aceito de início, mas creio que a realidade validou nosso modelo, os nossos resultados se confirmaram. As pessoas estão vendo que o número de casos novos está baixando — afirma ela.

O estudo inicial deles foi com Espanha, Reino Unido, Portugal e Bélgica. Agora, os cientistas se debruçam em outros países, entre eles o Brasil.

— Há surtos em toda a Europa, mas não é uma segunda onda. São surtos que podem ser controlados. Não será como no primeiro semestre — diz Gomes.

Pessoas mais vulneráveis podem acabar mais expostas

A imunidade coletiva natural é diferente daquela alcançada com uma vacina e não é garantia contra a pandemia. Na natural, como a população tem diferentes graus de exposição e vulnerabilidade, os suscetíveis restantes acabam expostos a um vírus que ainda circula. Porém, o ritmo de propagação diminui. Na obtida por meio de vacinação é possível homogeneizar a população e proteger os vulneráveis.

— Em nenhum momento dissemos que distanciamento social e máscara são desnecessários. Sem eles, o sistema de saúde teria colapsado. Neste momento, tudo precisa ser feito com enorme cautela. A retomada precisa ser lenta e gradual para não expor todos os vulneráveis de uma vez, pois o vírus continua a circular — observa Corder.

Gabriela Gomes diz que os resultados mais otimistas, como o sinalizado pelo estudo de seu grupo, têm sido aceitos com mais dificuldade, com o argumento de não dar falsas expectativas.

— Discordo dessa visão. Se as pessoas pensarem que há mais chance, mais luz no fim do túnel, se souberem que farão um sacrifício por um ano, elas respeitariam mais as regras. As pessoas estão sufocadas em casa e pensam que ficarão assim por tempo indeterminado. Talvez se não houvesse esse viés, as pessoas não ficassem tão polarizadas — diz a cientista.

 

O Globo

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